quarta-feira, 30 de novembro de 2005

Está tudo doido

O caso GALP/ENI está longe de atingir o fim, faz-me mesmo lembrar aqueles jogos de futebol que são decididos por grandes penalidades. Para já estamos no prolongamento.
Ao que parece o grupo italiano desta vez foi demasiado longe, tendo, no dizer do administrador executivo da GALP, copiado o plano estabelecido pela empresa portuguesa.
Julgo que chegámos a um ponto sem retorno, que o mesmo é dizer só uma coisa interessa e importa e essa coisa é tão só a data em que os italianos fazem as malas, tudo o que seja para além disso é pura especulação com folclore à mistura.
Mas no meio disto tudo duas coisas há que me fazem alguma confusão.
A primeira é que se fosse ao contrário estou crente que o governo italiano já teria resolvido a questão, sendo que a resolução tinha passado por mandar os portugueses dar uma volta ao bilhar grande e isso tinha acontecido no final do tempo regulamentar, se não mesmo no fim da primeira parte.
Por isso não percebo o porquê de tanta cerimónia por parte do nosso governo.
A segunda prende-se com o facto de não ter ouvido da parte dos partidos na oposição qualquer referência a este caso. Estamos ou não perante uma questão de interesse nacional? Se estamos, e não há a menor dúvida que sim, porquê o PCP, o PSD, o CDS/PP, o Bloco, sei lá mais quem não vieram já expressar o seu apoio ao governo? Ou será que os pactos de regime são só para matérias que lhes possam trazer benefícios?

As escutas

Nunca aqui me referi directamente ao processo Casa Pia porque acho este processo demasiado complexo e cuja verdade estará demasiado longe quer para mim quer para a maioria dos portugueses. Após este tempo todo acreditem que não sei quem são os arguidos ou as vítimas. Não sei se há presentes que deviam estar ausentes e se há ausentes que deviam estar presentes. Uma coisa eu sei: para além do muito fumo que se tem lançado um culpado existe (no meu ponto de vista é claro) e é real. Trata-se da Casa Pia. A instituição foi incapaz de tomar conta dos menores que tinha à sua guarda.
Mas este texto não se prende com o processo em si mesmo, tem sim a ver com o que apareceu ontem num determinado jornal. Trata-se de escutas realizadas e posteriormente validadas no processo, escutas essas que, pelo que foi transcrito, são meramente pessoais e irrelevantes para o processo.
Se as escutas são irrelevantes para o processo porque é que nele figuram? Com que direito se mete ao barulho alguém que actuou num gesto de amizade e/ou de solidariedade?
Espero sinceramente, e sem fazer cavalo de batalha da tese conspirativa, que isto não seja encomenda de ninguém.

E por falar em políticos

Não entendo, nem aceito, as faltas de Manuel Alegre à votação do Orçamento de Estado. Se não se quer comprometer com este orçamento e porque está em campanha só terá uma coisa a fazer: pedir suspensão do mandato, quanto mais não seja em prol da tão propalada renovação dos políticos que tantas vezes tem servido de justificação para a sua campanha.
Mas o pedido de suspensão não deve ser somente para Alegre.
Que eu saiba nenhum dos candidatos presidenciais e ao mesmo tempo deputados são omnipresentes, portanto ou fazem campanha ou estão na Assembleia.

70 anos

Fernando Pessoa faleceu faz hoje 70 anos. E porque a melhor forma de homenagear um escritor é lendo o que ele escreveu ou escreve, deixo-vos alguns poemas.

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa, Cancioneiro


VII - Da Minha Aldeia

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
Alberto Caeiro, O guardador de rebanhos

Lídia

Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde que quer que estejamos.

Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde quer que moremos, Tudo é alheio
Nem fala língua nossa.
Façamos de nós mesmos o retiro
Onde esconder-nos, tímidos do insulto
Do tumulto do mundo.
Que quer o amor mais que não ser dos outros?
Como um segredo dito nos mistérios,
Seja sacro por nosso.

Ricardo Reis

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...

Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...
Álvaro de Campos

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